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Artigo: O legado da Revolução Farroupilha e o processo penal



20/09/2016

Por: Daniel Kessler de Oliveira
  
Como o Canal Ciências Criminais é um veículo de alcance nacional, é necessário um breve introito para justificar o título e a coluna. No dia de amanhã, 20 de setembro, o Rio Grande do Sul comemora a data da Revolução Farroupilha, sendo feriado no estado e mais um bom motivo para o cultivo das tradições gauchescas.

Assim, imbuído neste espírito escrevo a presente coluna.

Como tudo no Rio Grande do Sul, esta data está longe de ser uma unanimidade, pois muitos criticam a sua comemoração por celebrar uma guerra perdida, por comemorar batalhas onde muitas vidas foram exterminadas, dentre tantos outros argumentos extremamente pertinentes.

Pois bem, não tenho aptidão para realizar qualquer reflexão histórica, nem ousaria fazer, com isto, já fica a advertência e o prévio pedido de desculpas por eventuais excessos ou omissões.

No entanto, esta data representa para grande parte do povo gaúcho a celebração de suas tradições, de expressão do orgulho de um povo que, historicamente, sempre se portou como questionador, como aguerrido, como capaz de lutar pelos seus ideais, a quem a vitória ou a derrota podem acontecer, mas sempre serão precedidas de lutas e de uma entrega verdadeira.

Ainda que na prática muitos destes valores tenham se perdido, o 20 de setembro sempre reaviva esta chama em cada coração gaúcho.

Mas o que este debate pode importar para as Ciências Criminais?

Dentre inúmeros episódios ocorridos durante a Revolução Farroupilha e muitos nomes que ali se revelaram, temos que as lutas de Honório Lemes, se assemelham a ideais ainda hoje buscados.

Atribui-se a ele a frase: a liberdade não se implora de joelhos, que deve inspirar todos aqueles que corajosamente labutam na advocacia criminal e devem buscar de cabeça erguida o enfrentamento de um Estado, muitas vezes, arbitrário.

Estamos suprimindo direitos e garantias individuais em nome de argumentos utópicos e utilitaristas, o “bem comum”, a “segurança pública”, o “interesse social” e mais uma série de jargões reducionistas revelam uma prática cada vez mais autoritária do ente público.

A associação ilógica entre defesa de direitos e a impunidade separam de forma maniqueísta a sociedade e colocam os advogados do “lado de lá”, na defesa “deles” na luta contra “nós”.

Como todo pensamento totalitário ele necessita de práticas que cativem o senso comum e que retirem as amarras do poder estatal, que, afinal, fará tudo para a defesa do “justo”, para o restabelecimento da “ordem”.

Os exemplos históricos parecem não ter sido bastante para aprendermos aquilo que ZAFFARONI (1995, p. 81) há muito nos adverte:

"A mais elementar experiência institucional demonstra que sempre que há poder sem controle opera-se o abuso de poder."

Não há poder legítimo que desconheça limites e, por estes limites, que devemos lutar, de cabeça erguida, sem ajoelharmo-nos perante aqueles que tentem sob as vestes de uma pseudo justiça, desrespeitar direitos e garantias individuais.

Em tempos de protagonismos judiciais, onde fins justificam os meios e o Judiciário desconhece os limites a ele impostos pela legislação e pela própria Constituição Federal, não é de se estranhar que os “direitos humanos” passem a receber trato pejorativo e vinculados a defesa do crime e do criminoso.

Os limites impostos pela própria linguagem desapareceram e a filosofia da consciência volta a imperar em pleno século XXI, onde ao intérprete é possível dizer o que bem entender sobre qualquer coisa, desde que se justifique por algum “fim” vendido como justo, será motivo de aplausos e delírios sociais.

Não há exercício hermenêutico que explique o protagonismo de se aplicar apenas a lei que lhe serve, de interpretar um texto normativo desconectado dos princípios que o informam e, pior, invocar “princípios” para se fazer o que bem entende com o texto normativo.

Alguns atores judiciais estão trajando vestes de heróis do povo e o povo está aquiescendo com estas práticas, olvidando-se que superheróis são privilégios de obras de ficção e os superpoderes que outorgamos a alguém hoje, podem nos custar muito caro amanhã.

Vivemos iludidos pelo espírito de um filme ficcionista onde o mocinho precisa pegar o bandido, mas a lei impede, as burocracias fazem com que o bandido siga impune, enquanto o Mocinho não consegue prendê-lo, mesmo que todos os espectadores saibam quem é culpado.

Aí o que o Mocinho faz? Age pela “justiça” e negando a lei, por ter convicção na culpa do bandido o prende mesmo assim ou o mata e o filme termina com ele (mocinho) sangrando, sujo, talvez com uma explosão o fundo e nos braços da mocinha. The End. Final feliz.

Estamos acreditando nisto! Com a diferença de que aqui é vida real, aqui não estamos todos olhando um filme e sabendo quem é o “bem” e quem é “mal”.

Acreditarmos que alguma pessoa ou alguma instituição é digna de um grau de confiança que despreze os limites ao seu poder é abrir as portas para a arbitrariedade, é aceitar o abuso que hoje até pode me estar sendo interessante, mas que representa o rompimento de uma barreira que não mais será erguida e que pode, num futuro próximo, me cobrar um preço muito alto.

Todos queremos combater a criminalidade, combater a corrupção e ter uma sociedade mais segura, mas isto não se consegue exterminando direitos fundamentais.

Não há possibilidade de estruturação de um Estado Democrático e de uma nação justa, quando a lei não disser mais nada. Quando o texto legal for um mero instrumento suscetível a vontade do intérprete.

Por isto, um motivo de orgulho neste 20 de setembro é a força para lutar por aquilo que moveu Honório Lemes, que hoje estampa a sua lápide na cidade de Rosário – RS e que foi a sua luta:

"Quero leis que governem homens e não homens que governem leis."

REFERÊNCIAS

ZAFFARONI, Eugênio Raul. Poder Judiciário: Crises, acertos e desacertos. Trad: Juarez Tavares. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995. 

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