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Copa do Mundo em Porto Alegre: o megaevento em três tempos

04/10/2014

Por Paulo Roberto Rodrigues Soares

Universidade Federal do Rio Grande do Sul e  Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre

Publicado originalmente no Boletim Copa em Discu$$ão nº32

E agora José, João, Maria, Sebastiana? A Copa acabou. O Brasil não ganhou. E o que foi que restou? Que lições e legados guardaremos da Copa do Mundo no Brasil após a sua realização? As manifestações pré-Copa e que não se repetiram durante os jogos retornarão? (Evidentemente que o aparato repressivo preventivo instalado ajudou. Mas não foi só isso. Retornaremos ao tema mais adiante). Ainda estamos no “calor dos acontecimentos” ou já viramos a página?

Com a finalização da Copa do Mundo de 2014 (a “Copa das Copas”?) incluindo aqui o drama nacional da “tragédia” do Mineirão no dia 8 de julho, pretendemos neste texto realizar um pequeno balanço do antes, do durante e do depois (ainda imediato) da Copa. Não no Brasil, mas na cidade de Porto Alegre, atentando mais para o contexto urbano e social da cidade. Esta leitura do megaevento em três tempos não é definitiva, mas representa uma primeira reflexão dos acontecimentos do (mega)evento Copa do Mundo na cidade de Porto Alegre, o qual, sem dúvidas, deixa marcas importantes na política do espaço e no espaço da política na cidade.

Os megaeventos e o espaço da cidade

Em seu livro “A Natureza do Espaço” (1996), especialmente no capítulo 6 (“O tempo(os eventos) e o espaço”) o geógrafo Milton Santos trata dos eventos e de sua relação com espaço social, o espaço geográfico. Desta análise dos eventos e sua importância para a produção do espaço retiramos algumas lições para entender o alcance e o significado mais amplo dos megaeventos, especialmente os esportivos, que foram e são objeto de nossa análise ao longo destes últimos anos.

Aponta Milton Santos (1996) que “um evento é o resultado de um feixe de vetores, conduzido por um processo, levando uma nova função ao meio preexistente. Mas o evento só é identificável quando ele é percebido, isto é, quando se perfaz e se completa” (p. 61). Também salienta que um evento não pode ser realizado sem a materialidade, sem as formas espaciais que lhe dão suporte e que muitas vezes são impactadas e modificadas pelo próprio evento. Nas palavras de Santos

“a cada evento, a forma se recria. Assim, a forma-conteúdo não pode ser considerada, apenas, como forma, nem, apenas, como conteúdo. Ela significa que o evento, para se realizar, encaixa-se na forma disponível mais adequada a que se realizem as funções de que é portador. Por outro lado, desde o momento em que o evento se dá, a forma, o objeto que o acolhe ganha uma outra significação, provinda desse encontro. Em termos de significação e de realidade, um não pode ser entendido sem o outro, e, de fato, um não existe sem o outro. Não há como vê-los separadamente“. (p. 66)

E mais adiante completa: “os eventos mudam as coisas, transformam os objetos, dando-lhes, ali mesmo onde estão, novas características” (p. 95).

Milton Santos ainda categoriza dos megaeventos em termos de escala temporal (duração) e espacial (alcance). Com relação à escala temporal considera que o evento tem “uma duração natural” (o tempo do evento em si, quando ele está se desenrolando) e uma “duração organizacional” (a duração das suas consequências, das suas regulações). Neste sentido, os eventos podem ser prolongados, durando “além de seu ímpeto próprio, mediante um principio de ordem” (p. 97). Completando:

“Os eventos não se dão isoladamente, mas em conjuntos sistémicos – verdadeiras “situações” – que são cada vez mais objeto de organização: na sua instalação, no seu funcionamento e no respectivo controle e regulação. Dessa organização vão depender, ao mesmo tempo, a duração e a amplitude do evento. Do nível da organização depende a escala de sua regulação e a incidência sobre a área de ocorrência do evento” (p. 97).

Aqui estamos nos aproximando da noção de “megaevento” (esportivo) e de seus impactos políticos, econômicos e sociais, bem como espaciais e territoriais. A materialidade é imprescindível para o megaevento: os estádios, as arenas, as estruturas temporárias, as infraestruturas. Caso ela não exista, deve ser produzida. Os megaeventos esportivos (e nos referimos aqui à Copa do Mundo de 2014) são um evento em três tempos: o antes, o durante e o depois. À duração natural da Copa (os 32 dias do megaevento entre 12 de junho e 13 de julho de 2014) temos também que adir a sua duração organizacional, a qual se divide em dois tempos: o antes, a preparação, as obras, as mudanças legais, e o depois, o legado material e imaterial que fica para a cidade e o país que a acolheram.

Por fim, Milton Santos refere-se que a escala espacial se aplica aos eventos segundo duas acepções: “a primeira é a escala da “origem” das variáveis envolvidas na produção do evento; a segunda é a escala do seu impacto, de sua realização” (p.99).

Aos megaeventos esportivos também é possível aplicarmos estas duas escalas. A escala de origem é aquela onde se situam as corporações que detêm o poder de organização dos megaeventos esportivos, bem como da rede de corporações que são parceiras (patrocinadoras, fornecedoras) das organizadoras. Insere-se ainda nesta escala (global) o Estado nacional, o qual firma compromissos com a acolhida e a organização do megaevento em seu território. Já a “escala de impacto” é a escala local, a escala das cidades-sede, assim como a escala dos impactos sociais e territoriais mais perversos que recaem sobre as populações (as remoções, a higienização das cidades, por exemplo). Outros impactos também são visíveis: transformações na paisagem urbana, intensificação de atividades econômicas. Todos com serias consequências políticas e sociais para nossas cidades.

Tentaremos agora, de forma breve, analisar os impactos da Copa do Mundo de 2014 em Porto Alegre, à luz deste esquema de análise proposto por Milton Santos.

A Copa do Mundo em Porto Alegre em três tempos

Antes da Copa os preparativos: a definição do estádio, o planejamento das obras, o “caderno de encargos”, os compromissos da cidade com a organização do evento. Mas também outras mudanças: leis de “incentivo” à atividade econômica, flexibilização das licitações e das construções. Transformações nos espaços públicos, reordenamento das posturas na cidade. Remoções de famílias.

Foi um momento também de intensas disputas e embates. O poder público local disposto a realizar todas as obras e a permitir que o capital construtor e comercial tivesse todas as condições para atuar na cidade ao longo deste processo. Porto Alegre definiu a construção de dois estádios “padrão FIFA”: o Beira-rio, que foi totalmente remodelado para ser a sede dos cinco jogos programados para a cidade, e a Arena, construída com os mesmos incentivos fiscais e através de um sistema de financiamento muito semelhante ao do estádio da Copa. Tanto um como outro contaram com benesses estatais para sua efetivação. Ambos geraram investimentos imobiliários no seu entorno e adjacências. Ambos adotaram um novo modelo de gestão das “arenas multiuso” e estão praticando políticas de ocupação semelhantes (mais isso é assunto para o “depois”).

As obras de mobilidade urbana e do aeroporto geraram fortes impactos nas comunidades tradicionais adjacentes. Territórios de vivência de décadas foram desagregados em nome das obras da Copa. Nem todas as remoções programadas foram realizadas. A organização e a resistência deu fôlego a algumas comunidades, ou a parcelas das comunidades que conquistaram ainda que precariamente ou talvez temporariamente, o direito à permanência ou de não remoção para locais distantes. Estas conquistas não se deram de maneira tranquila, foram intensos embates, tentativas de cooptação de lideranças, propostas tentadoras que dividiam a resistência. Ao final, apenas um terço das obras prometidas e programadas foram concluídas. A maioria ficou para o “depois”, o terceiro tempo da Copa do Mundo em Porto Alegre.

Tentou-se neste período estabelecer-se uma nova relação entre a cidadania e a cidade, especialmente no uso e apropriação dos espaços públicos. Os anos anteriores à Copa foram de tentativa de disciplinarização do uso dos espaços: retirada do comércio de rua, das populações de rua, um novo regulamento (restritivo, repressivo) da vida noturna na cidade, especialmente no seu bairro “bohemio” mais popular: a Cidade Baixa. Bares foram fechados em nome dos regulamentos de segurança, a permanência nos espaços públicos foi reprimida, cerceada em nome da tranquilidade dos moradores. Chamava a atenção a “seletividade” dos lugares de controle, especialmente os de concentração da juventude com propostas alternativas de uso do espaço público.

O primeiro semestre de 2013, especialmente os meses de junho e julho foram de intensas mobilizações de rua, milhares de pessoas nas manifestações. A mobilidade urbana e o questionamento dos gastos e dos impactos sociais das obras da Copa estavam na primeira fila das palavras de ordem. Destapou-se uma fratura entre o poder público, a sociedade civil organizada e os movimentos sociais. Os canais formais atuais de “representação” da população foram seriamente questionados, seja por cooptados, seja por inoperantes frente à diversidade de demandas. Mas também ficou claro o alinhamento do poder público local com o poder econômico: o capital construtor especialmente, liberado para construir onde e como quisesse. Isto afetou até mesmo à setores da classe media da cidade, que sentiram também os efeitos da Copa do Mundo e se organizaram para “resistir”.

O ano de 2014 contemplou algumas importantes manifestações, porém à medida que se aproximava o megaevento as mobilizações foram perdendo força, congregando menos pessoas.

Chegamos então ao segundo tempo. Dos jogos, o “durante” a Copa.

Cabe salientar aqui que o megaevento inclui diferentes temporalidades. O tempo longo da preparação e o tempo curto e imediato dos jogos. E durante este último o megaevento subverte e ocupa os outros tempos: o de trabalho, o de consumo, o de lazer, o de informação. O “bombardeio midiático”, a sucessão de feriados e as interrupções na temporalidade rotineira alteram nossa percepção do tempo. As horas equivalem dias. Os dias equivalem semanas. O tempo da cidade também se alterou: aulas suspensas, repartições fechadas, alteração de trânsito e horários de trabalho. Para muitos o melhor foi parar. Ficar em casa ou aderir à onda dos jogos. A cidade mudou. Turistas torcedores de diferentes nacionalidades transitaram por ela. Diferentes línguas e culturas se encontrando nos espaços dos jogos: estádio, fan fest e no “caminho do gol”. Nas noites que seguiam aos jogos a ocupação das ruas do bairro Cidade Baixa. Estranhamente (ou não) aquele que a Prefeitura queria controlar. Os mecanismos de controle ao comércio de rua também foram relaxados. Aos estrangeiros foi permitido permanecer e ocupar as ruas até o amanhecer. Foi permitido comprar cerveja barata também. Do outro lado da cidade, junto ao centro na zona portuária o ensaio da gentrificação: o “projeto” Cais Embarcadero reuniu vips em uma outra forma de “celebrar” a Copa do Mundo. Pequena mostra do projeto futuro de “revitalização” da orla portuária da cidade. Algumas manifestações foram realizadas, mas com poucos participantes e a medida que a Copa avançada estas iam arrefecendo.

Porém, o sonho acabou. Os quinze dias de Copa do Mundo em Porto Alegre se passaram. A “invasão argentina” (50 mil? 80 mil?) aconteceu, mas a cidade “sobreviveu”: os “barra bravas”, retidos na fronteira, não saquearam a cidade. E os comerciantes apesar de comemorarem não viram a tão esperada chuva de dólares e euros a cair do céu. Diga-se de passagem, que o clima não ajudou muito. O inverno gaúcho se apresentou e também participou da festa, especialmente nos dias de jogos da Seleção Brasileira (o que afetou a frequência à fan fest).

Agora estamos no terceiro tempo, no depois.

Estamos fazendo as contas, avaliando, discutindo os “legados” da Copa do Mundo em Porto Alegre. A metrópole retomou a sua rotina, sem alemães, holandeses, australianos, franceses, coreanos, nigerianos, argelinos ou argentinos. Com muitas obras inacabadas a serem retomadas e concluídas (talvez fiquem para o próximo período eleitoral). Nem bem a Copa acabou e a Cidade Baixa foi alvo de nova ação “regulamentadora”: bares e casas noturnas novamente fechados. Repressão nos espaços públicos. As lutas urbanas retornaram com uma grande ocupação em área de especulação imobiliária na zona sul da cidade. Nos estádios a elitização da torcida e uma nova maneira de torcer “educadamente” sentado. Embora fora deles as torcidas continuem se enfrentando violentamente. Semana passada a Prefeitura anunciou que se iniciariam os reparos nas rachaduras nos viadutos e corredores de ônibus inaugurados dias antes do mundial. Estas podem ser consertadas. As rachaduras no tecido social da cidade demandarão mais tempo.

Referências:

Santos, M. A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.

Vargas, H. C. e Lisboa, V. S. Dinâmicas espaciais dos grandes eventos no cotidiano da cidade: significados e impactos urbanos. Cadernos Metrópole. São Paulo, v. 13, n. 25, pp. 145-161, jan/jun 2011.

Fonte: AGB Urbana

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